Relato histórico é guardado por filha da autora, que agora testemunha drama semelhante 83 anos depois. Porto Alegre passa por nova tragédia semelhante a de 1941 — Foto: Arquivo
As chuvas no Rio Grande do Sul fizeram a arquiteta Elenara Stein Leitão recuperar uma relíquia familiar. Em 1941, a sua mãe, Helena Silva Stein, escreveu uma carta para a irmã contando em detalhes o que havia vivido na grande enchente de Porto Alegre no mês anterior.
A cheia de 1941 era até agora a maior referência de desastre natural em Porto Alegre, com o nível de elevação do rio Guaíba alcançando 4m76. A cota foi superada no último domingo (5), quando o rio registrou 5,33 metros. Elenara reside na Avenida Independência, uma área de Porto Alegre que não foi diretamente afetada pelo avanço da água.
De sua janela, porém, ela enxerga pontos inundados a uma quadra e meia de seu prédio. Nos últimos dias, Elenara vem testemunhando eventos semelhantes aos relatados por sua mãe, que faleceu 2023, aos 98 anos.
– Minha mãe falava muito da enchente de 1941, que para a gente era algo um tanto fantástico: como a cidade podia ter ficado alagada desta forma? – diz Elenara. – No momento em que o Guaíba ultrapassou a cota de 1941, foi uma sensação difícil de explicar. Nunca pensei que estaria vivendo uma coisa assim. Imagino que ela sentisse isso na época também.
‘Sem água, sem leite, sem jornal’
A carta de Helena Stein foi escrita logo após as enchentes, em 26 de maio de 1941, em resposta a uma missiva de sua irmã Flávia, que morava em outra cidade. Então com 16 anos, Helena conta ter vivenciado “um assunto muito sério”, ficando “vários dias às escuras, sem água, sem leite, sem jornal”.
Helena faz o retrato de uma cidade paralisada: “Os trens pararam e o telégrafo interrompeu. Estávamos simplesmente isolados do interior. Cinemas, colégios, Faculdade de Medicina e Direito ficaram cheios de flagelados e o governo sustentando todo o pessoal. Flagelados 17.000! O professorado todo dando comida e cuidando deles”.
Registros do passado
Ela conta ainda que a água foi quase até o segundo andar no Pão dos Pobres e quase cobriu toda a Igreja de Santo Antônio, no bairro Partenon. “Os meninos saíram e o prejuízo foi calculado em 5 mil contos!”, escreve.
Morando com uma tia no Rio após a morte do pai e da mãe aos 10 anos, a gaúcha Helena estava de passagem por Porto Alegre e presenciou a enchente um tanto por acaso. Em 1944, voltou novamente para Porto Alegre, onde casou-se com o pai de Elenara. A família passou por várias cidades até se instalar definitivamente à capital gaúcha, em 1976.
Elenara mantém em sua casa um arquivo com as cartas que a mãe mandava para sua irmã que morava no sul.
– São relatos históricos porque contém muitas informações sobre a época e a vida das cidades – diz a arquiteta. – Minha mãe passou pela Segunda Guerra, guerra fria, pandemia e era guerreira, bonita e muito alegre. Mas tinha síndrome de pânico, o que sempre atribuí às suas perdas da infância.
Leia a carta completa
Porto Alegre, 26 de maio de 1941
Flavinha querida, Saudades!
Respondo com carinho tua querida cartinha de 28 do mez passado e que só me veio às mãos hontem. Imagina! Quasi um mez!
Como se foram de enchente? Aqui em Porto Alegre foi um assunto muito sério! As águas atingiram a Rua da Praia. A zona que mais sofreu foi Navegantes, São João e Menino Deus. Foi até Floresta e Passo da Mangueira.
Tia Maria sahiu de casa. Nós quasi que saímos pois faltou uns quatro metros para chegar aqui em casa! Zilá e Carlos passaram várias semanas aqui, flagelados. A água lá foi um bom pedaço acima do assoalho. Este estragou-se completamente, ficando todo embaulado.
A cidade esteve vários dias às escuras, sem água, sem leite, sem jornal, foi mesmo de assustar! A coitada da Belmira perdeu tudo, tudo…os móveis abriram-se todos, estragaram-se completamente.
Os trens pararam e o telegrafo interrompeu. Estávamos simplesmente isolados do interior. Cinemas, colégios, Faculdade de Medicina e Direito ficaram cheios de flagelados e o governo sustentando todo o pessoal. Flagelados 17.000! O professorado todo dando comida e cuidando deles.
No Pão dos Pobres foi até ao segundo andar, quasi cobriu a Igreja de Santo Antonio. Os meninos sahiram e o prejuízo foi calculado em 5 mil contos!
Dizem que em São Jerônimo foi uma cousa horrorosa! Cachoeira (do Sul), a não ser as lavouras, a cidade não sofreu nada, mas o arroz perderam todo.
Por Bolívar Torres — Rio de Janeiro – Divulgação: scctv.net.br/Rádio Giramundoweb